Bilhete a um jovem físico

terça-feira, 15 de maio de 2012
Minha ocupação principal, atualmente, é ensinar. E minha preocupação principal, atualmente, é... como motivar estes alunos, meu Deus?
Em minhas andanças pela internet em busca de uma resposta milagrosa para meu questionamento deparei-me com esse texto delicioso do Prof. Dr. Francisco Caruso. Nem vou falar sobre o texto sob o risco de estragar tudo que foi escrito tão brilhantemente. Aproveitem!

Há muitos anos venho notando uma mudança significativa entre os alunos no meio universitário. É cada vez mais frequente ser procurado por estudantes que manifestam o interesse em “ter uma bolsa de iniciação científica”. Nestes casos, invariavelmente, minha resposta é lacônica, limitando-me a dizer que estou sem tempo para novas orientações.
Em algumas poucas ocasiões (poucas mesmo) fui interpelado para saber o que é uma iniciação científica e, assim, tive a oportunidade de tentar compreender melhor os anseios de certos jovens que desejam ser físicos. Entretanto, confesso que apenas um jovem calouro chamado Yuri Bomfim Martins me fez refletir mais seriamente sobre o que eu poderia e deveria lhe dizer que pudesse lhe ser efetivamente útil.
Lembrei-me, então, que entre 1903 e 1908, o grande poeta Rainer Maria Rilke escreveu uma série de cartas ao jovem Franz Kappus, respondendo às inquietações deste jovem que pretendia ser poeta. Tais cartas (apenas as respostas) foram publicadas postumamente, em 1929, e se tornaram um exemplo clássico de conselhos a um jovem que pretenda seguir uma determinada carreira. Eles têm o mérito de antecipar as armadilhas do cotidiano pessoal e de fugir a qualquer pretensão de apontar caminhos que possam ser vitoriosos a priori.
Tal foi a força das ponderações do poeta, que seu livro serviu – e serve até hoje – de motivação para tantos profissionais escreverem livros como Cartas a um jovem cientista, a um jovem psicanalista, a um jovem economista e assim por diante. Confesso que venho resistindo à tentação de ler estes outros textos, pois sempre desconfiei que alguns dos conselhos do próprio Rilke poderiam ser igualmente úteis a um jovem físico, por exemplo, e não gostaria de misturá-los, ainda que inconscientemente, com argumentos de outros autores. Mas em que sentido se justificaria aproveitar conselhos dados originalmente a um jovem poeta para um jovem físico? Bem, em primeiro lugar, podemos nos lembrar de Leonardo da Vinci para quem a Arte jamais significou um mero produto da imaginação subjetiva, mas sim uma atividade verdadeira e indispensável da própria compreensão da realidade. Em particular, a visão artística que Leonardo tinha da Natureza pode ser considerada como um ponto de transição metodologicamente necessário, como aponta Ernest Cassirer, que preparou o caminho para a abstração científica se inserir em uma nova percepção da Natureza a partir de Galileu. Arte e Ciências podem ser entendidas como representações distintas de uma mesma realidade. Além disto, acredito como Gaston Bachelard que há muito em comum no processo criativo tanto nas Artes quanto nas Ciências. Por último, Rilke foi capaz de identificar questões realmente basilares, comuns a todas as profissões. Dito isto, transcrevo a seguir o bilhete que enviei por email a Yuri Bomfim Martins, esperando que ele não se importe em tê-lo tornado público.



Prezado Yuri,


A primeira coisa que chama atenção lendo “Cartas a um jovem poeta” é a recorrência da palavra solidão e de outras com a mesma conotação, que aparecem nada mais, nada menos que 39 vezes em 10 cartas. Muito mais do que caminho para a depressão ou angústia, Rilke a aponta como instrumento indispensável de auto-conhecimento, de encontros. “O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não deveria fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém”. Voltar-se para si mesmo é o único caminho. Neste ponto da carta, o poeta sugere que o jovem se pergunte se para ele é realmente preciso escrever. Faça isso você também com relação à Física. Pergunte-se se ela é indispensável para você. Se a resposta for afirmativa, construa sua vida pautada nesta necessidade. “Volte-se para a natureza”, diz o poeta, e o mesmo vale para o jovem físico: volte-se para a Physis. Além disto, a solidão é inerente ao processo criativo. Por mais que você discuta e aprenda com colegas e professores, é sozinho que você cria. Dentre todos, talvez esse seja o conselho maior: só você é capaz de descobrir se você precisa criar!

Por outro lado, há coisas mais palpáveis que vamos percebendo com a experiência, que, segundo Woody Allen, é aquilo que adquirimos quando não precisamos mais. Em sua formação, dedique-se durante o curso básico a aprender e admirar as técnicas experimentais, a dominar os métodos matemáticos da Física fazendo um grande números de exercícios e, sobretudo, leia, leia muito. Não apenas sobre sua disciplina. É na prática da leitura que encontrará os instrumentos para aguçar seu espírito crítico. Não deixe de lado a história e a filosofia. Um número expressivo de grandes cientistas tinham uma formação e preocupações humanistas, como Galileu, Schrödinger, Pauli, Einstein e outros. Resista o máximo possível à tentação de fazer iniciação científica antes do quinto período. Por mais atraente que possa parecer, isto lhe tomará tempo precioso de sua formação básica. Sem contar que muitas das vezes vejo o aluno fazendo um trabalho puramente mecânico, sem nenhum proveito real para sua formação.


Sabe Yuri, sempre acreditei na existência de um Zeitgeist, e, infelizmente, o atual não é favorável ao desenvolvimento científico, como posso lhe explicar em outra ocasião. Fazem parte dele, por exemplo, a exacerbada e equivocada valorização do “publish or perish”, do “H-factor”, do “citation index” do “JCR” e assim por diante. Procure resistir a este tipo de pressão calcada em frios indicadores, os quais, na verdade, não foram criados para os objetivos para os quais acabam sendo empregados por muitos de nossos pares. Dedique-se ao tema pelo qual você se apaixone e ao qual acredita que possa dar uma contribuição importante, independente de modismos. Como disse uma vez o italiano Icilio Guareschi, referindo-se ao grande Avogadro, “os grandes méritos de um homem não devem tanto ser medidos pelo valor intrínseco de sua obra, quanto pela influência que tiveram sobre seus contemporâneos e, sobretudo, sobre o futuro da Ciência”. Isto, meu querido Yuri, não é medido em números! Por outro lado, compartilho a visão de nosso saudoso Leite Lopes, que aliás era apaixonado pela poesia de Rilke e frequentemente emocionava-se recitando-a em alemão, quando ele afirmou que “um dia, esse clima de desconfiança e desestímulo vai desaparecer”. Daí você precisar ter plena consciência de suas motivações e de seu desejo de se dedicar a uma profissão para a qual o caminho inicial que você tem pela frente é bastante longo, pois será preciso fazer 4 anos de graduação, 2 ou 3 de mestrado e uns 4 de doutorado. Com sorte, terá ainda mais 2 ou 4 anos de pós-doutorado antes que possa disputar vagas nas instituições de ensino e pesquisa. Assim, sua motivação precisa ser quase inabalável. A vantagem, como disse o próprio Rilke, é que “O senhor é tão jovem, tem diante de si todo começo”... “Alegre-se com seu crescimento, para o qual não pode levar ninguém junto...”.

Meu caro, a tentação de continuar escrevendo é grande, mas isto transformaria a proposta inicial de um bilhete em outra coisa. Quem sabe não continuamos a conversa pessoalmente em outra ocasião? Gostaria, portanto, de encerrar com algumas palavras que Rilke teve o cuidado de inserir em uma de suas cartas: “Se ainda posso acrescentar algo, é o seguinte: não acredite que quem procura consolá-lo vive sem esforço, em meio às palavras simples e tranquilas que às vezes lhe fazem bem. A vida dele tem muita labuta e muita tristeza e permanece muito atrás dessas coisas. Se fosse de outra maneira, nunca teria encontrado aquelas palavras”. Um forte abraço,


Caruso.

Fonte: Francisco Caruso, "e-mail a um jovem estudante [assunto:educação, ética e ciência]", Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2011, p. 29-37.

PS: Obrigada ao professor Caruso que, gentilmente, me permitiu publicar este texto neste blog.

Um comentário:

  1. Prezada Profa. Janaína Dutra,

    muito obrigado por divulgar meu "bilhete" e parabéns pela iniciativa do blog. Espero que seus leitores apreciem o texto. Cordialmente, Francisco Caruso

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Feito com ♥ por Lariz Santana